Quando parti para este texto sobre os 10 anos de Good Kid, M.A.A.D City fi-lo com uma intenção mais revisionista, numa de tentar perceber a forma como, sociologicamente, o disco sobreviveu ao tempo. À imagem do que fiz com My Beautiful Dark Twisted Fantasy, por exemplo, numa altura em que ainda escrevia noutra plataforma. Mas Stereogum, só para citar um exemplo, já fez uma interessante análise do género, colocando artistas como J. Cole, Chance the Rapper e Vince Staples como herdeiros diretos do primeiro clássico de Kendrick Lamar. E o facto de existirem tantas narrativas absolutamente fascinantes em relação ao que significa Good Kid prova a sua complexidade e intemporalidade.
Vou então tentar seguir outro caminho: Good Kid, M.A.A.D City é essencialmente um disco sobre o pecado e sobre questões mais relacionadas com a filosofia como a bondade e a maldade. Do ponto de vista sociológico estará relacionado com a forma como o sistema está viciado. Se quisermos ser redutores: é a luta entre o bem e o mal, mas o mal acaba por ser algo muito abrangente, muito maior do que uma pessoa ou uma classe social. Não é minha intenção reduzir um álbum ultra complexo a um objeto monotemático. Good Kid é infinitamente complexo, mas não faltam outro tipo de análises, sejam elas relacionada com a narrativa, a música, os beats, os samples, as letras, o discurso sociológico, racial ou a reflexão acerca do hip hop.
Comecemos por um dado estatístico: o termo “sin” ou derivados surge 17 vezes ao longo do álbum que começa com “Sherane a.k.a Master Splinter's Daughter” que arranca com “The Sinner’s Prayer”. A canção acaba depois por conduzir à descrição da noite em que o protagonista terá conhecido Sherane, e a um enumerar de confissões com o nível de ansiedade e obsessão sexual a aumentar gradualmente à medida que se aproxima de sua casa:
“Ass came with a hump, from the jump she was a camel
I want to ride like Arabians, push an '04 Mercedes-Benz”
(…)
“Seventeen with nothin' but pussy stuck on my mental
My motive was rather sinful, "What you tryna get into?"
(…)
“Love or lust, regardless, we'll fuck 'cause the trife in us
It's deep-rooted, the music of bein' young and dumb
Is never muted, in fact, it's much louder where I'm from”
(…)
I'm thinkin' 'bout that sex
Thinkin' 'bout her thighs or maybe kissin' on her neck or maybe what position's next
Sent a picture of her titties, blowin' up my texts
A descrição é uma confissão que termina com uma traição de Sherane (Judas?):
“And six steps from where she stay, she wavin' me 'cross the street
I pulled up, a smile on my face, and then I see Two niggas, two black hoodies,
I froze as my phone rang”
Segue-se um voicemail dos pais. A casa de Kendrick faz parte dessa ideia de pecado que, em Good Kid, Maad City, se parte em 3 eixos essenciais: o ambiente familiar destrutivo regado a álcool, a pressão do grupo de amigos para o vício e crime e a obsessão pelo sexo. No fundo, as coisas que pululam esta cidade louca e impedem o miúdo de ser bom. Estes são os “pecados” que mais surgem associados à adolescência. Mas a reflexão de Kendrick pode ser ainda mais complexa e extravasar a cidade onde cresceu: é impossível para um cristão ser bom num mundo louco, seja em Compton, Paris, Shangai ou Lisboa.
O disco segue para “Bitch Don’t Kill My Vibe” que começa novamente com confissão:
"I Am a Sinner
Who's Probably Gonna Sin Again
Who's prob'ly gonna sin again Lord, forgive me, Lord, forgive me
Things I don't understand
Sometimes I need to be alone
Bitch Don’t Kill My Vibe”
A canção começa então com Kendrick a assumir as suas falhas para depois, e só depois, se dirigir aos pares esforçando-se por afastar de alguns dos seus pares. Ao longo do disco, Kendrick crítica, de forma subtil, a vida de gangsta, mas assumindo que por vezes pode acabar por cair na mesma armadilha. É um pecador, tem essa noção, luta contra o pecado, mas por vezes acaba por cair.
O assumir das falhas fica muito claro no 1.º verso:
“Fell on my face and awoke with a scar, another mistake livin’
deep in my heart
Wear it on top of my sleeve in a flick”
No Genius, é o próprio Kendrick que explica:
“I’m really putting my vulnerability out there, and putting my mistakes out there. When the cameras are on me, I’m still going to show you because I know you can relate to it, at the end of the day. That is one of my favorite lines in there, in that record, because it shows the emotion of the line but at the same time is showing that I’m not scared. I’m putting my mistakes out there for people to actually latch onto and know that they can make a difference within themselves at the same time, too.”
No vídeo há um momento em que Kendrick Lamar satiriza de forma brilhante a forma como o hip hop se relaciona com as drogas e o alcoól: aquele em que é baptizado numa “pool full o liquor” e sai com os olhos a arder.
Em "Peer Presure" passamos a estar de forma bastante clara no eixo da pressão dos amigos, eventualmente o elemento mais comum e que acaba por estar presente de forma transversal ao longo de todo o disco. Aqui faz todo o sentido trazer “Swimming Pools”, mas também associá-la ao eixo de ambiente familiar destrutivo: a capa de Good Kid com a fotografia de infância, em que, ao lado de um inocente e bebé K-Dot, surgem dois tios e o avô, sendo este último a representação de uma infância que viu mais do que devia e que acabaria por o influenciar para sempre.
O dinheiro enquanto raiz do pecado garante logo uma carga teológica a “Money Trees”. No refrão:
It go Halle Berry or hallelujah
Pick your poison, tell me what you doin'
A canção é sobre a tentação, sobre a ideia de o dinheiro ter a certa altura domado a vida de Kendrick. À Complex afirmou/confessou:
That’s about temptation. After the ride of going on ‘The Art of Peer Pressure,’ you listen to that, and that was the mind state of thinking everything is about a dollar. That’s where we were at at the time. Everything was about money. We didn't care about nothing else truthfully.
Em “Poetic Justice” regressa a Sherane e, no primeiro verso, ouvimos:
“You're in the mood for empathy, there's blood in my pen”
Kendrick explica no Genius, adicionando a ideia de empatia que guia Kendrick e não o egocentrismo.
I don’t want it to be so one-sided. I want you to feel my perspective but at the same time know where she is coming from. She may come from a broken home where she wasn’t taught actual home training and dealing with men. I mean, not to actually say that in a blunt manner, but when I do a record like Poetic Justice, you see that she does have something about her that is attractive, and I really just want to show both sides of the fence. I never wanted to really completely slander her all the way down, so that is a good point. I am glad you caught that, and it is real tricky and that is something that I thought about writing that record, knowing the history that me and her had.
Depois de “Good Kid”, “m.A.A.d City” e “Swimming Pools”, “Sing About Me” acaba por resumir quase tudo: a constante ideia de luta contra o pecado, “demasiados pecados”, as tentações e a luta para se manter na fé. Depois de se enumerarem 2 casos próximos vítimas do sistema, Kendrick contraria a ideia de vingança que perpetua esse mesmo sistema e conclui com o seguinte verso para, depois, terminar com o regresso da “Sinner’s Prayer”, a mesma oração com que começa o disco:
“Too many sins, I'm runnin' out
Somebody send me a well for the drought
See all I know is takin' notes
On takin' this life for granted, granted, if he provoke
My best days, I stress days (Lord, forgive me for all my sins, for I not know—)
My best days, I stress days
Say "fuck the world," my sex slave
Money, pussy, and greed—what's my next crave?
Whatever it is, know it's my next grave
Tired of runnin', tired of runnin', tired of tumblin' Tired of runnin', tired of tumblin' – backwards
My momma say "See, a pastor give me a promise
What if today was the rapture and you completely tarnished?
The truth will set you free, so to me be completely honest
You dyin' of thirst, you dyin' of thirst
So hop in that water, and pray that it works."